segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ESTUDAR.....

A Razão


A atividade racional

A atividade racional e suas modalidades

A Filosofia distingue duas grandes modalidades da atividade racional, realizadas pela razão subjetiva ou pelo sujeito do conhecimento: a intuição (ou razão intuitiva) e o raciocínio (ou razão discursiva).

A atividade racional discursiva, como a própria palavra indica, discorre, percorre uma realidade ou um objeto para chegar a conhecê-lo, isto é, realiza vários atos de conhecimento até conseguir captá-lo. A razão discursiva ou o pensamento discursivo chega ao objeto passando por etapas sucessivas de conhecimento, realizando esforços sucessivos de aproximação para chegar ao conceito ou à definição do objeto.

A razão intuitiva ou intuição, ao contrário, consiste num único ato do espírito, que, de uma só vez, capta por inteiro e completamente o objeto. Em latim, intuitos significa: ver. A intuição é uma visão direta e imediata do objeto do conhecimento, um contato direto e imediato com ele, sem necessidade de provas ou demonstrações para saber o que conhece.

A intuição

A intuição é uma compreensão global e instantânea de uma verdade, de um objeto, de um fato. Nela, de uma só vez, a razão capta todas as relações que constituem a realidade e a verdade da coisa intuída. É um ato intelectual de discernimento e compreensão, como, por exemplo, tem um médico quando faz um diagnóstico e apreende de uma só vez a doença, sua causa e o modo de tratá-la. Os psicólogos se referem à intuição usando o termo insight, para referirem-se ao momento em que temos uma compreensão total, direta e imediata de alguma coisa, ou o momento em que percebemos, num só lance, um caminho para a solução de um problema científico, filosófico ou vital.

Um exemplo de intuição pode ser encontrado no romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Riobaldo e Diadorim são dois jagunços ligados pela mais profunda amizade e lealdade, companheiros de lutas e cumpridores de uma vingança de sangue contra os assassinos da família de Diadorim. Riobaldo, porém, sente-se cheio de angústia e atormentado, pois seus sentimentos por Diadorim são confusos, como se entre eles houvesse muito mais do que a amizade. Diadorim é assassinado. Quando o corpo é trazido para ser preparado para o funeral, Riobaldo descobre que Diadorim era mulher. De uma só vez, num só lance, Riobaldo compreende tudo o que sentia, todos os fatos acontecidos entre eles, todas as conversas que haviam tido, todos os gestos estranhos de Diadorim e compreende, instantaneamente, a verdade: estivera apaixonado por Diadorim.

A razão intuitiva pode ser de dois tipos: intuição sensível ou empírica e intuição intelectual.

1. A intuição sensível ou empírica (do grego, empeiria: experiência sensorial) é o conhecimento que temos a todo o momento de nossa vida. Assim, com um só olhar ou num só ato de visão percebemos uma casa, um homem, uma mulher, uma flor, uma mesa. Num só ato, por exemplo, capto que isto é uma flor: vejo sua cor e suas pétalas, sinto a maciez de sua textura, aspiro seu perfume, tenho-a por inteiro e de uma só vez diante de mim.

A intuição empírica é o conhecimento direto e imediato das qualidades sensíveis do objeto externo: cores, sabores, odores, paladares, texturas, dimensões, distâncias. É também o conhecimento direto e imediato de estados internos ou mentais: lembranças, desejos, sentimentos, imagens.

A intuição sensível ou empírica é psicológica, isto é, refere-se aos estados do sujeito do conhecimento enquanto um ser corporal e psíquico individual - sensações, lembranças, imagens, sentimentos, desejos e percepções são exclusivamente pessoais.

Assim, a marca da intuição empírica é sua singularidade: por um lado, está ligada à singularidade do objeto intuído (ao “isto” oferecido à sensação e à percepção) e, por outro, está ligada à singularidade do sujeito que intui (aos “meus” estados psíquicos, às “minhas” experiências). A intuição empírica não capta o objeto em sua universalidade e a experiência intuitiva não é transferível para um outro objeto. Riobaldo teve uma intuição empírica.

2. A intuição intelectual difere da sensível justamente por sua universalidade e necessidade. Quando penso: “Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”, sei, sem necessidade de provas ou demonstrações, que isto é verdade. Ou seja, tenho conhecimento intuitivo do princípio da contradição. Quando digo: “O amarelo é diferente do azul”, sei, sem necessidade de provas e demonstrações, que há diferenças. Vejo, na intuição sensível, a cor amarela e a cor azul, mas vejo, na intuição intelectual, a diferença entre cores. Quando afirmo: “O todo é maior do que as partes”, sei, sem necessidade de provas e demonstrações, que isto é verdade, porque intuo uma forma necessária de relação entre as coisas.

A intuição intelectual é o conhecimento direto e imediato dos princípios da razão (identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente), das relações necessárias entre os seres ou entre as idéias, da verdade de uma idéia ou de um ser.

Na história da Filosofia, o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano, isto é, a afirmação de Descartes: “Penso (cogito), logo existo”. De fato, quando penso, sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso, mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso, primeiro, pensar e saber que se pensa.

Quando digo: “Penso, logo existo”, estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando, sem necessidade de provas e demonstrações. A intuição capta, num único ato intelectual, a verdade do pensamento pensando em si mesmo.

Um outro exemplo de intuição intelectual é oferecido pela fenomenologia, criada por Husserl. Trata-se da intuição intelectual de essências ou significações. Toda consciência, diz Husserl, é sempre “consciência de” ou consciência de alguma coisa, isto é, toda consciência é um ato pelo qual visamos um objeto, um fato, uma idéia. A consciência representa os objetos, os fatos, as pessoas. Cada representação pode ser obtida por um passeio ou um percurso que nossa consciência faz à volta de um objeto. Essas várias representações são psicológicas e individuais, e o objeto delas, o representado, também é individual ou singular.

Por exemplo, diz Husserl, quando quero pensar em alguém, como Napoleão, posso representá-lo ganhando a batalha de Waterloo, prisioneiro na ilha de Elba e na ilha de Santa Helena, montado em seu cavalo branco, usando o chapéu de três pontas e com a mão direita enfiada na túnica.

Cada uma dessas representações é singular: por um lado, cada uma delas é um ato psicológico singular que eu realizo (um ato de lembrar, um ato de ver a imagem de Napoleão num quadro, um ato de ler sobre ele num livro, etc.) e, por outro, cada uma delas possui um representante singular (Napoleão a cavalo, Napoleão na batalha de Waterloo, Napoleão fugindo de Elba, etc.). No entanto, embora sejam singulares e distintas umas das outras, todas possuem o mesmo representado, o mesmo significado, a mesma significação ou a mesma essência: Napoleão.

Quando colocamos de lado a singularidade psicológica de cada uma de nossas representações e a singularidade de cada um dos representantes, ficando apenas com a idéia ou significação “Napoleão”, como uma universalidade ou generalidade, temos uma intuição da essência “Napoleão”. A intuição da essência é a apreensão intelectual imediata e direta de uma significação, deixando de lado as particularidades dos representantes que indicam empiricamente a significação. É assim que tenho intuição intelectual da essência ou significação “triângulo”, “imaginação”, “memória”, “natureza”, “cor”, “diferença”, “Europa”, “pintura”, “literatura”, “tempo”, “espaço”, “coisa”, “quantidade”, “qualidade”, etc. Intuímos idéias.

Fala-se também de uma intuição emotiva ou valorativa. Trata-se daquela intuição na qual, juntamente com o sentido ou significação de alguma coisa, captamos também seu valor, isto é, com a idéia intuímos também se a coisa ou essência é verdadeira ou falsa, bela ou feia, boa ou má, justa ou injusta, possível ou impossível, etc. Ou seja, a intuição intelectual capta a essência do objeto (o que ele é) e a intuição emotiva ou valorativa capta essa essência pelo que o objeto vale.

A razão discursiva:
dedução, indução e abdução

A intuição pode ser o ponto de chegada, a conclusão de um processo de conhecimento, e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo. O processo de conhecimento, seja o que chega a uma intuição, seja o que parte dela, constitui a razão discursiva ou o raciocínio.

Ao contrário da intuição, o raciocínio é o conhecimento que exige provas e demonstrações e se realiza igualmente por meio de provas e demonstrações das verdades que estão sendo conhecidas ou investigadas. Não é um ato intelectual, mas são vários atos intelectuais internamente ligados ou conectados, formando um processo de conhecimento.

Um caçador sai pela manhã em busca da caça. Entra no mato e vê rastros: choveu na véspera e há pegadas no chão; pequenos galhos rasteiros estão quebrados; o capim está amassado em vários pontos; a carcaça de um bicho está à mostra, indicando que foi devorado há poucas horas; há um grande silêncio no ar, não há canto de pássaros, não há ruídos de pequenos animais.

O caçador supõe que haja uma onça por perto. Ele pode, então, tomar duas atitudes. Se, por todas as experiências anteriores, tiver certeza de que a onça está nas imediações, pode preparar-se para enfrentá-la: sabe que caminhos evitar, se não estiver em condições de caçá-la; sabe que armadilhas armar, se estiver pronto para capturá-la; sabe como atraí-la, se quiser conservá-la viva e preservar a espécie.

O caçador pode ainda estar sem muita certeza se há ou não uma onça nos arredores e, nesse caso, tomará uma série de atitudes para verificar a presença ou ausência do felino: pode percorrer trilhas que sabem serem próprias de onças; pode examinar melhor as pegadas e o tipo de animal que foi devorado; pode comparar, em sua memória, outras situações nas quais esteve presente uma onça, etc.

Assim, partindo de indícios, o caçador raciocina para chegar a uma conclusão e tomar uma decisão. Temos aí um exercício de raciocínio empírico e prático (isto é, um pensamento que visa a uma ação) e que se assemelha à intuição sensível ou empírica, isto é, caracteriza-se pela singularidade ou individualidade do sujeito e do objeto do conhecimento.

Quando, porém, um raciocínio se realiza em condições tais que a individualidade psicológica do sujeito e a singularidade do objeto são substituídas por critérios de generalidade e universalidade, temos a dedução, a indução e a abdução.

A dedução

Dedução e indução são procedimentos racionais que nos levam do já conhecido ao ainda não conhecido, isto é, permitem que adquiramos conhecimentos novos graças a conhecimentos já adquiridos. Por isso, se costuma dizer que, no raciocínio, o intelecto opera seguindo cadeias de razões ou os nexos e conexões internos e necessários entre as idéias ou entre os fatos.

A dedução consiste em partir de uma verdade já conhecida (seja por intuição, seja por uma demonstração anterior) e que funciona como um princípio geral ao qual se subordinam todos os casos que serão demonstrados a partir dela. Em outras palavras, na dedução parte-se de uma verdade já conhecida para demonstrar que ela se aplica a todos os casos particulares iguais. Por isso também se diz que a dedução vai do geral ao particular ou do universal ao individual. O ponto de partida de uma dedução é ou uma idéia verdadeira ou uma teoria verdadeira.

Por exemplo, se definirmos o triângulo como uma figura geométrica cujos lados somados são iguais à soma de dois ângulos retos, dela deduziremos todas as propriedades de todos os triângulos possíveis. Se tomarmos como ponto de partida as definições geométricas do ponto, da linha, da superfície e da figura, deduziremos todas as figuras geométricas possíveis.

No caso de uma teoria, a dedução permitirá que cada caso particular encontrado seja conhecido, demonstrando que a ele se aplicam todas as leis, regras e verdades da teoria. Por exemplo, estabelecida a verdade da teoria física de Newton, sabemos que: 1) as leis da física são relações dinâmicas de tipo mecânico, isto é, se referem à relações de força (ação e reação) entre corpos dotados de figura, massa e grandeza; 2) os fenômenos físicos ocorrem no espaço e no tempo; 3) conhecidas as leis iniciais de um conjunto ou de um sistema de fenômenos, poderemos prever os atos que ocorrerão nesse conjunto e nesse sistema.

Assim, se eu quiser conhecer um ato físico particular - por exemplo, o que acontecerá com o corpo lançado no espaço por uma nave espacial, ou qual a velocidade de um projétil lançado de um submarino para atingir um alvo num tempo determinado, ou qual é o tempo e a velocidade para um certo astro realizar um movimento de rotação em torno de seu eixo -, aplicarei a esses casos particulares as leis gerais da física newtoniana e saberei com certeza a resposta verdadeira.

A dedução é um procedimento pelo qual um fato ou objeto particulares são conhecidos por inclusão numa teoria geral.

Costuma-se representar a dedução pela seguinte fórmula:

Todos os x são y (definição ou teoria geral);
A é x (caso particular);
Portanto, A é y (dedução).

Exemplos:

1.
Todos os homens (x) são mortais (y);
Sócrates (A) é homem (x);
Portanto, Sócrates (A) é mortal (y).

2.
Todos os metais (x) são bons condutores de eletricidade (y);
O mercúrio (A) é um metal (x);
Portanto, o mercúrio (A) é bom condutor de eletricidade (y).

A razão oferece regras especiais para realizar uma dedução e, se tais regras não forem respeitadas, a dedução será considerada falsa.

A indução

A indução realiza um caminho exatamente contrário ao da dedução. Com a indução, partimos de casos particulares iguais ou semelhantes e procuramos a lei geral, a definição geral ou a teoria geral que explica e subordina todos esses casos particulares. A definição ou a teoria são obtidas no ponto final do percurso. E a razão também oferece um conjunto de regras precisas para guiar a indução; se tais regras não forem respeitadas, a indução será considerada falsa.

Por exemplo, colocamos água no fogo e observamos que ela ferve e se transforma em vapor; colocamos leite no fogo e vemos também que ele se transforma em vapor; colocamos vários tipos de líquidos no fogo e vemos sempre sua transformação em vapor. Induzimos desses casos particulares que o fogo possui uma propriedade que produz a evaporação dos líquidos. Essa propriedade é o calor.

Verificamos, porém, que os diferentes líquidos não evaporam sempre na mesma velocidade; cada um deles, portanto, deve ter propriedades específicas que os fazem evaporar em velocidades diferentes. Descobrimos, porém, que a velocidade da evaporação não é o fato a ser observado e sim quanto de calor cada líquido precisa para começar a evaporar. Se considerarmos a água nosso padrão de medida, diremos que ela ferve e começa a evaporar a partir de uma certa quantidade de calor e que é essa quantidade de calor que precisa ser conhecida. Podemos, a seguir, verificar um fenômeno diferente. Vemos que água e outros líquidos, colocados num refrigerador, endurecem e se congelam, mas que, como no caso do vapor, cada líquido se congela ou se solidifica em velocidades diferentes. Procuramos, novamente, a causa dessa diferença de velocidade e descobrimos que depende tanto de certas propriedades de cada líquido quanto da quantidade de frio que há no refrigerador. Percebemos, finalmente, que é essa quantidade que devemos procurar.

Com essas duas séries de fatos (vapor e congelamento), descobrimos que os estados dos líquidos variam (evaporação e solidificação) em decorrência da temperatura ambiente (calor e frio) e que cada líquido atinge o ponto de evaporação ou de solidificação em temperaturas diferentes. Com esses dados podemos formular uma teoria da relação entre os estados da matéria - sólido, líquido e gasoso - e as variações de temperatura, estabelecendo uma relação necessária entre o estado de um corpo e a temperatura ambiente. Chegamos, por indução, a uma teoria.

A dedução e a indução são conhecidas com o nome de inferência, isto é, concluir alguma coisa a partir de outra já conhecida. Na dedução, dado X, infiro (concluo) a, b, c, d. Na indução, dados a, b, c, d, infiro (concluo) X.

A abdução

O filósofo inglês Peirce considera que, além da dedução e da indução, a razão discursiva ou raciocínio também se realiza numa terceira modalidade de inferência, embora esta não seja propriamente demonstrativa. Essa terceira modalidade é chamada por ele de abdução.

A abdução é uma espécie de intuição, mas que não se dá de uma só vez, indo passo a passo para chegar a uma conclusão. A abdução é a busca de uma conclusão pela interpretação racional de sinais, de indícios, de signos. O exemplo mais simples oferecido por Peirce para explicar o que seja a abdução são os contos policiais, o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais e formando uma teoria para o caso que investigam.

Segundo Peirce, a abdução é a forma que a razão possui quando inicia o estudo de um novo campo científico que ainda não havia sido abordado. Ela se aproxima da intuição do artista e da adivinhação do detetive, que, antes de iniciarem seus trabalhos, só contam com alguns sinais que indicam pistas a seguir. Os historiadores costumam usar a abdução.

De modo geral, diz-se que a indução e a abdução são procedimentos racionais que empregamos para a aquisição de conhecimentos, enquanto a dedução é o procedimento racional que empregamos para verificar ou comprovar a verdade de um conhecimento já adquirido.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011


A Razão
Capítulo 1
A Razão
Os vários sentidos da palavra razão
Nos capítulos precedentes, insistimos muito na afirmação de que a Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural, das coisas e dos seres humanos. Dissemos que ela confia na razão e que, hoje, ela também desconfia da razão. Mas, até agora, não dissemos o que é a razão, apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia.
Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos sentidos. Dizemos, por exemplo, “eu estou com a razão”, ou “ele não tem razão”, para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com certeza alguma coisa. Também dizemos que, num momento de fúria ou de desespero, “alguém perde a razão”, como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou não ter, possuir e perder, ou recuperar, como na frase: “Agora ela está lúcida, recuperou a razão”.
Falamos também frases como: “Se você me disser suas razões, sou capaz de fazer o que você me pede”, querendo dizer com isso que queremos ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa. Fazemos perguntas como: “Qual a razão disso?”, querendo saber qual a causa de alguma coisa e, nesse caso, a razão parece ser alguma propriedade que as próprias coisas teriam, já que teriam uma causa.
Assim, usamos “razão” para nos referirmos a “motivos” de alguém, e também para nos referirmos a “causas” de alguma coisa, de modo que tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de “razão”, mas em sentido diferente.
Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos diferentes a palavra razão possui: certeza, lucidez, motivo, causa. E todos esses sentidos encontram-se presentes na Filosofia.
Por identificar razão e certeza, a Filosofia afirma que a verdade é racional; por identificar razão e lucidez (não ficar ou não estar louco), a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural; por identificar razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos por motivos, a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional; por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de acordo com relações causais, a Filosofia afirma que a realidade é racional.
É muito conhecida a célebre frase de Pascal, filósofo francês do século XVII: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nessa frase, as palavras razões e razão não têm o mesmo significado, indicando coisas diversas. Razões são os motivos do coração, enquanto razão é algo diferente de coração; este é o nome que damos para as emoções e paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à consciência intelectual e moral.
Ao dizer que o coração tem suas próprias razões, Pascal está afirmando que as emoções, os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão desconhece “as razões do coração”, Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções, mas possuindo seus motivos ou suas próprias razões.
Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira: Nossa vida emocional possui causas e motivos (as “razões do coração”), que são as paixões ou os sentimentos, e é diferente de nossa atividade consciente, seja como atividade intelectual, seja como atividade moral.
A consciência é a razão. Coração e razão, paixão e consciência intelectual ou moral são diferentes. Se alguém “perde a razão” é porque está sendo arrastado pelas “razões do coração”. Se alguém “recupera a razão” é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram mais fortes do que as paixões. A razão, enquanto consciência moral, é a vontade racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais, mas realiza as ações morais como atos de virtude e de dever, ditados pela inteligência ou pelo intelecto.
Além da frase de Pascal, também ouvimos outras que elogiam as ciências, dizendo que elas manifestam o “progresso da razão”. Aqui, a razão é colocada como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento verdadeiro da Natureza, da sociedade, da História e isto é considerado algo bom, positivo, um “progresso”.
Por ser considerado um “progresso”, o conhecimento científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade, de tal modo que a razão é concebida como temporal também, isto é, como capaz de aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos.
Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro: “Fulano trouxe um trabalho irracional; era um caos, uma confusão. Incompreensível. Já o trabalho de beltrano era uma beleza: claro, compreensível, racional”. Aqui, a razão, ou racional, significa clareza das idéias, ordem, resultado de esforço intelectual ou da inteligência, seguindo normas e regras de pensamento e de linguagem.
Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão. Nós a consideramos a consciência moral que observa as paixões, orienta a vontade e oferece finalidades éticas para a ação. Nós a vemos como atividade intelectual de conhecimento da realidade natural, social, psicológica, histórica. Nós a concebemos segundo o ideal da clareza, da ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das palavras.
Para muitos filósofos, porém, a razão não é apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas também uma propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas, existindo na própria realidade. Para esses filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (Natureza, sociedade, História) porque ela é racional em si mesma.
Fala-se, portanto, em razão objetiva (a realidade é racional em si mesma) e em razão subjetiva (a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos). A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional; a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional. Para muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades.
Origem da palavra razão
Na cultura da chamada sociedade ocidental, a palavra razão origina-se de duas fontes: a palavra latina ratio e a palavra grega logos. Essas duas palavras são substantivos derivados de dois verbos que têm um sentido muito parecido em latim e em grego.
Logos vem do verbo legein, que quer dizer: contar, reunir, juntar, calcular. Ratio vem do verbo reor, que quer dizer: contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular.
Que fazemos quando medimos, juntamos, separamos, contamos e calculamos? Pensamos de modo ordenado. E de que meios usamos para essas ações? Usamos palavras (mesmo quando usamos números estamos usando palavras, sobretudo os gregos e os romanos, que usavam letras para indicar números).
Por isso, logos, ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros. Assim, na origem, razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimir-se correta e claramente, para pensar e dizer as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível. É, também, a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais.
Desde o começo da Filosofia, a origem da palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras atitudes mentais:
1. ao conhecimento ilusório, isto é, ao conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a verdade delas; para a razão, a ilusão provém de nossos costumes, de nossos preconceitos, da aceitação imediata das coisas tais como aparecem e tais como parecem ser. As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade. A razão se opõe à mera opinião;
2. às emoções, aos sentimentos, às paixões, que são cegas, caóticas, desordenadas, contrárias umas às outras, ora dizendo “sim” a alguma coisa, ora dizendo “não” a essa mesma coisa, como se não soubéssemos o que queremos e o que as coisas são. A razão é vista como atividade ou ação (intelectual e da vontade) oposta à paixão ou à passividade emocional;
3. à crença religiosa, pois, nesta, a verdade nos é dada pela fé numa revelação divina, não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto. A razão é oposta à revelação e por isso os filósofos cristãos distinguem a luz natural - a razão - da luz sobrenatural - a revelação;
4. ao êxtase místico, no qual o espírito mergulha nas profundezas do divino e participa dele, sem qualquer intervenção do intelecto ou da inteligência, nem da vontade. Pelo contrário, o êxtase místico exige um estado de abandono, de rompimento com a atividade intelectual e com a vontade, um rompimento com o estado consciente, para entregar-se à fruição do abismo infinito. A razão ou consciência se opõe à inconsciência do êxtase.
Os princípios racionais
Desde seus começos, a Filosofia considerou que a razão opera seguindo certos princípios que ela própria estabelece e que estão em concordância com a própria realidade, mesmo quando os empregamos sem conhecê-los explicitamente. Ou seja, o conhecimento racional obedece a certas regras ou leis fundamentais, que respeitamos até mesmo quando não conhecemos diretamente quais são e o que são. Nós as respeitamos porque somos seres racionais e porque são princípios que garantem que a realidade é racional.
Que princípios são esses? São eles:
Princípio da identidade, cujo enunciado pode parecer surpreendente: “A é A” ou “O que é, é”. O princípio da identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar. Ele afirma que uma coisa, seja ela qual for (um ser da Natureza, uma figura geométrica, um ser humano, uma obra de arte, uma ação), só pode ser conhecida e pensada se for percebida e conservada com sua identidade.
Por exemplo, depois que um matemático definir o triângulo como figura de três lados e de três ângulos, não só nenhuma outra figura que não tenha esse número de lados e de ângulos poderá ser chamada de triângulo como também todos os teoremas e problemas que o matemático demonstrar sobre o triângulo, só poderão ser demonstrados se, a cada vez que ele disser “triângulo”, soubermos a qual ser ou a qual coisa ele está se referindo. O princípio da identidade é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecê-las a partir de suas definições.
Princípio da não-contradição (também conhecido como princípio da contradição), cujo enunciado é: “A é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não-A”. Assim, é impossível que a árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira; que o cachorrinho de dona Filomena seja e não seja branco; que o triângulo tenha e não tenha três lados e três ângulos; que o homem seja e não seja mortal; que o vermelho seja e não seja vermelho, etc.
Sem o princípio da não-contradição, o princípio da identidade não poderia funcionar. O princípio da não-contradição afirma que uma coisa ou uma idéia que se negam a si mesmas se autodestroem, desaparecem, deixam de existir. Afirma, também, que as coisas e as idéias contraditórias são impensáveis e impossíveis.
Princípio do terceiro-excluído, cujo enunciado é: “Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade”. Por exemplo: “Ou este homem é Sócrates ou não é Sócrates”; “Ou faremos a guerra ou faremos a paz”. Este princípio define a decisão de um dilema - “ou isto ou aquilo” - e exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira. Mesmo quando temos, por exemplo, um teste de múltipla escolha, escolhemos na verdade apenas entre duas opções - “ou está certo ou está errado” - e não há terceira possibilidade ou terceira alternativa, pois, entre várias escolhas possíveis, só há realmente duas, a certa ou a errada.
Princípio da razão suficiente, que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir ou para acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecida pela nossa razão. O princípio da razão suficiente costuma ser chamado de princípio da causalidade para indicar que a razão afirma a existência de relações ou conexões internas entre as coisas, entre fatos, ou entre ações e acontecimentos.Pode ser enunciado da seguinte maneira: “Dado A, necessariamente se dará B”. E também: “Dado B, necessariamente houve A”.
Isso não significa que a razão não admita o acaso ou ações e fatos acidentais, mas sim que ela procura, mesmo para o acaso e para o acidente, uma causa. A diferença entre a causa, ou razão suficiente, e a causa casual ou acidental está em que a primeira se realiza sempre, é universal e necessária, enquanto a causa acidental ou casual só vale para aquele caso particular, para aquela situação específica, não podendo ser generalizada e ser considerada válida para todos os casos ou situações iguais ou semelhantes, pois, justamente, o caso ou a situação são únicos.
A morte, por exemplo, é um efeito necessário e universal (válido para todos os tempos e lugares) da guerra e a guerra é a causa necessária e universal da morte de pessoas. Mas é imprevisível ou acidental que esta ou aquela guerra aconteçam. Podem ou não podem acontecer. Nenhuma causa universal exige que aconteçam. Mas, se uma guerra acontecer, terá necessariamente como efeito mortes. Mas as causas dessa guerra são somente as dessa guerra e de nenhuma outra.
Diferentemente desse caso, o princípio da razão suficiente está vigorando plenamente quando, por exemplo, Galileu demonstrou as leis universais do movimento dos corpos em queda livre, isto é, no vácuo.
Pelo que foi exposto, podemos observar que os princípios da razão apresentam algumas características importantes:
● não possuem um conteúdo determinado, pois são formas: indicam como as coisas devem ser e como devemos pensar, mas não nos dizem quais coisas são, nem quais os conteúdos que devemos ou vamos pensar;
● possuem validade universal, isto é, onde houver razão (nos seres humanos e nas coisas, nos fatos e nos acontecimentos), em todo o tempo e em todo lugar, tais princípios são verdadeiros e empregados por todos (os humanos) e obedecidos por todos (coisas, fatos, acontecimentos);
● são necessários, isto é, indispensáveis para o pensamento e para a vontade, indispensáveis para as coisas, os fatos e os acontecimentos. Indicam que algo é assim e não pode ser de outra maneira. Necessário significa: é impossível que não seja dessa maneira e que pudesse ser de outra.
Ampliando nossa idéia de razão
A idéia de razão que apresentamos até aqui e que constitui o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns abalos profundos desde o início do século XX.
Aqui, vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da idéia da razão.
Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou, mais precisamente, da física e atingiu o princípio do terceiro-excluído. A física da luz (ou óptica) descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas. Isso significou que já não se podia dizer: “ou a luz se propaga por ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas”, como exigiria o princípio do terceiro-excluído, mas sim que a luz pode propagar-se tanto de uma maneira como de outra.
Por sua vez, a física atômica ou quântica abalou o princípio da razão suficiente. Vimos que esse princípio afirma que, conhecido A, posso determinar como dele necessariamente resultará B, ou, conhecido B, posso determinar necessariamente como era A que o causou. Em outras palavras, conhecido o estado E de um fenômeno, posso deduzir como será o estado E2 ou E3 e vice-versa: conhecidos E3 e E2 posso dizer como era o estado E. Ora, a física dos átomos revelou que isso não é possível, que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam, nem sua velocidade e direção, nem os efeitos que produzirão.
Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio racional na Natureza: o princípio da indeterminação. Assim, o princípio da razão suficiente é válido para os fenômenos macroscópicos, enquanto o princípio da indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica.
Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e da não-contradição. A física sempre considerou que a Natureza obedece às leis universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva. Em outras palavras, as leis da Natureza existem por si mesmas, são necessárias e universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento.
Contudo, a teoria da relatividade mostrou que as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador, isto é, pelo sujeito do conhecimento e, portanto, para um observador situado fora de nosso sistema planetário, a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes, de tal modo que, por exemplo, o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para outros seres (se existirem) da galáxia; a geometria que seguimos pode não ser a que tenha sentido noutro sistema planetário; o que pode ser contraditório para nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante.
Um outro problema, também atingindo os princípios da razão, foi trazido pela lógica. O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema: quando digo “a estrela da manhã é a estrela da tarde” estou caindo em contradição e perdendo o princípio da identidade. No entanto, “estrela da manhã” é o planeta Vênus e “estrela da tarde” também é o planeta Vênus; dessa perspectiva, não há contradição alguma no que digo. É preciso, então, distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis: o objeto a que nós nos referimos, os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados em sua relação com o objeto referido. Somente dessa maneira podemos manter a racionalidade dos princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro-excluído.
Enfim, um outro tipo de problema foi trazido com o desenvolvimento dos estudos da antropologia, que mostraram como outras culturas podem oferecer uma concepção muito diferente da que estamos acostumados sobre o pensamento e a realidade. Isso não significa, como imaginaram durante séculos os colonizadores, que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou pré-racionais, e sim que possuem uma outra idéia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade.
Como a palavra razão é européia e ocidental, parece difícil falarmos numa outra razão, que seria própria de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”, que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única evolução.
Indeterminação da Natureza, pluralidade de enunciados para um mesmo objeto, pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que abalaram a razão, no século XX. A esse abalo devemos acrescentar dois outros. O primeiro deles foi trazido por um não-filósofo, Marx, quando introduziu a noção de ideologia; o segundo também foi trazido por um não-filósofo, Freud, quando introduziu o conceito de inconsciente.
A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica e política, e que a razão, em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade, poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade, a serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes. A razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra.
A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais. A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e, muitas vezes, como por exemplo no fenômeno do nazismo, a razão é louca e destrutiva.
Fatos como esses - as descobertas na física, na lógica, na antropologia, na história, na psicanálise - levaram o filósofo francês Merleau-Ponty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova idéia da razão, uma razão alargada, na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas.
Esse alargamento é duplamente necessário e importante. Em primeiro lugar, porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo - isto é, contra a visão de que a “nossa” razão e a “nossa” cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos. Em segundo lugar, porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento.
Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O QUE MOVE O MUNDO ? DINHEIRO OU IDEIAS


O filósofo grego Aristóteles narra, em uma de suas obras, que a rainha de Siracusa indagou ao poeta da corte o que era mais importante: ser rico ou ser sábio? “Rico”, respondeu o poeta, acrescentando que sempre via os sábios batendo à porta dos ricos, nunca o contrário.

O mesmo Aristóteles, entretanto, diz que o filósofo Antístenes, sabendo disso, explicou que assim acontecia porque os sábios – justamente por serem sábios – sabiam do que precisavam e, os ricos, por não saberem do que careciam, ignoravam estes.

A verdade é que não foi a riqueza que mudou mundo. As imensas fortunas de reis e imperadores, sempre ruíram ao longo da história. Toda riqueza acaba com a morte de quem a possui e, não raro, motiva ignomínia entre herdeiros. Só as ideias permanecem. Elas são as molas propulsoras da humanidade.

As ideias, já dizia Platão, são formas, modelos e paradigmas perfeitos e imutáveis, que constitui um mundo transcendente, do qual somos apenas uma mera cópia tosca, grosseira. Ou seja: não passamos de uma miragem da realidade do mundo das ideias

Por isso considero que cada homem deve ser um pé de árvore que frutifique ideias Devemos ser ideias ambulantes e genuínas, embora Platão ache que, em termos de ideias, apenas copiamos as já existentes no mundo transcendente.

Uma ideia, no entanto, não pode morrer em si. Não pode ser como uma árvore que não dá fruto. As ideias de cada um de nós devem ser dominadas, lapidadas e executadas. Assim, estaremos transformando a nossa própria vida e o mundo em que vivemos.

Sei que é pedir demais, querer que cada um de nós seja absolutamente original. Contudo, se, pelo menos vivermos conforme nossas ideias, já estaremos contribuindo imensamente para uma vida, onde a possibilidade de uma relação verdadeira seja almejada.

Nem sempre temos a verdadeira noção do poder transformador que possuem as ideias A força delas é algo magnífico e, não é por outra coisa que, em nome delas, se fundam filosofias, religiões, ideologias.

Li, em algum lugar, que os sucessos de Alexandre, o Grande, de um César e de um Napoleão, são insignificantes perante a compreensão que as ideias filosóficas, de forma transformadora, deram ao mundo, pois é o pensamento que transforma a face da humanidade.

Antes do homem construir a roda, veio primeiro a ideia dela, assim também como ao advento da palavra, o pensamento desta o antecedeu. Sem ideia o próprio homem não existe. “Penso, logo existo”, resumiu Descartes.

Mas, para que as ideias sejam realmente um importante fruto da razão humana, é necessário que elas floresçam, deem frutos e alimentem a humanidade com as mais magníficas iguarias, fartando-nos de tudo o que nos seja essencial.

Do ponto de vista pessoal garanto que sou governado por minhas próprias ideias, e faço delas o meu cavalo de batalha, o meu mote de vida e a minha arma de combate no cotidiano, afinal, não me prendo aos modismos ou as facilidades dos pensamentos prêt-à-porter.

Uma ideia, entretanto, somente será consequente se cumprir um caminho que parte de si mesma, passando pela vontade – que é a intencionalidade humana – e chegando até a ação, onde o ato se concretiza, e o pensamento se ilumina.

Nesse caso, a firmeza de vontade se faz necessária para que se conduza à ação. Ora, as ideias, ficando apenas no campo da ideias, são sementes que não dão frutos. Mas para que elas realmente deem frutos devem ser, convenientemente, tratadas. Caso contrário estaremos apenas jogando sementes em terra infértil.

“Não há vento favorável para quem não sabe a que porto se dirige”, escreveu Sêneca, famoso filósofo estoico latino. Deduzo disso que devemos ser donos dos nossos próprios narizes, tendo as nossas próprias ideias e vivendo conforme os nossos princípios, sem nos deixarmos levar pelos encantos dos cantos do Japiim.

Já disse um filósofo contemporâneo que, na vida humana, ou vivemos de acordo com o que pensamos, ou acabamos pensando de acordo com o nosso modo de viver. Quem menospreza a força das ideias acaba, portanto, pensando como vive e não vivendo como pensa.

Ninguém tem sentimento se não tiver ideia dele, logo, ninguém ama se não for capaz de pensar e, por fim, ninguém vive, se não tiver a mínima ideia do que seja a vida.

Tenha, portanto, a sua própria ideia, a sua própria luz para iluminar o seu próprio caminho. Assim, você terá o que todo ser humano deve ter: luz própria. E não precisará viver à sombra de ninguém.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Para estudar.....



O nascimento da Filosofia
Ouvindo a voz dos poetas
Escutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos de “sentimento do mundo”, o sentimento da velhice e da juventude perene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.
Assim, o poeta grego Arquíloco escreveu:
E não te esqueças, meu coração,
que as coisas humanas apenas
mudanças incertas são.
Outro poeta grego, Teógnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:
Choremos a juventude e a velhice também,
pois a primeira foge e a segunda sempre vem.
Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras:
A glória dos mortais num só dia cresce,
Mas basta um só dia, contrário e funesto,
para que o destino, impiedoso, num gesto
a lance por terra e ela, súbito, fenece.
Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis. Os poetas também exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:
O vento, a chuva, o sol, o frio
Tudo vai e vem, tudo vem e vai.
E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:
Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
...
Como a vida é senha
de outra vida nova
...
Como a vida é vida
ainda quando morte
...
Como a vida é forte
em suas algemas.
...
Como a vida é bela
...
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida.
O sentimento de renovação e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos é o que transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana, nos seguintes versos:
Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...
E, por isso, em outros versos seus, lemos:
O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
...
se nela algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses, o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos:
Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a Natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.
O que perguntavam os primeiros filósofos
Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável?
Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!
Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho.
Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas.
Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
O nascimento da Filosofia
Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.
Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações de Creta, Minos, Tirento e Micenas.
Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios (usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios (usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.
Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana.
Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental.
Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria.
Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral.
Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia.
Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.
No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada “orientalista”, e muitos, sobretudo no século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o “milagre grego”.
Com a palavra “milagre” queriam dizer várias coisas:
● que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse;
● que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem par, como é próprio de um milagre;
● que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles.
Nem oriental, nem milagre
Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o “milagre grego”.
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da idéia de um “milagre grego”, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega:
1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida.
Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;
3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita?
Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.
Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades.
Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família e a do sacerdote ou mago;
4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).
Mito e Filosofia
Resolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc.
A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido):
Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.
Condições históricas para o surgimento da Filosofia
Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.
Principais características da Filosofia nascente
O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:
● tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de alguma coisa;
● tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;
● exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: “Pedro é um menino e não um menino”, “A noite é escura e clara”, “O infinito não tem limites e é limitado”). Assim, quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;
● recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele;
● tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades.
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja, realiza uma síntese.
E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança.
No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.
Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem.
Separando as diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Polígrafo de Sociologia

Sociologia
Maria Helena Viana Bezerra
Cuiabá, 2008
Ministério da Educação
Escola Técnica Aberta do Brasil
Escola Técnica da Universidade Federal do Paraná
UNIDADE I
A SOCIOLOGIA COMO CIÊNCIA
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 13
Sociologia é a ciência que estuda o homem como elemento pertencente a um
grupo social. Nesta unidade, remetemo-nos à história, a fim de entendermos em
que contexto surgiu a Sociologia, o que significa investigar o que aconteceu na
história das sociedades que trouxe à tona a necessidade de uma ciência que
busca compreender as transformações sociais: a Sociologia. Vejamos como isso
acontece!
AS EXPLICAÇÕES
ACERCA DA SOCIEDADE
QUE ANTECEDERAM
A SOCIOLOGIA
É importante enfatizar que o senso comum é o primeiro estágio de conhecimento
e que precisa ser superado em direção a uma abordagem crítica e coerente, ou
seja, o senso comum precisa ser transformado em bom senso ou, ainda, em senso
crítico, que nada mais é do que a elaboração coerente do saber. Segundo o
filósofo Gramsci ( apud ARANHA; MARTINS, 1993), é “o núcleo sadio do senso
comum”.
Portanto, qualquer pessoa, se for estimulada em sua capacidade de
compreender e criticar, se torna capaz de juízos sábios, isto é, orientados para
sua humanização. Eis aí uma das funções da Sociologia.
O senso comum é o pensamento coletivo, a forma de pensar de um povo,
baseada na transmissão de informações que, muitas vezes, não é baseada em
conceito algum, apenas na crença de informação que se julga verdadeira, ou
seja, aquilo que todo mundo percebe facilmente ou que é adquirido por meio
de conhecimentos de nossos antepassados. Exemplo: não se deve comer
manga e, depois, tomar leite, pois pode ser extremamente perigoso.
Neste curso, o estudo da
Sociologia tem como objetivo
primeiro ajudá-lo a aumentar a
sua autonomia de reflexão e de
ação diante dos fatos que o
cercam, o que significa tirá-lo do
senso comum ou, ainda, do bom
senso e levá-lo ao chamado
senso crítico.
Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradição, herdado
dos antepassados e ao qual acrescentamos os resultados da experiência
vivida na coletividade a que pertencemos. Trata-se de um conjunto de idéias
que nos permite interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores
que nos ajuda a avaliar, julgar e, portanto, agir. O senso comum não é refletido
e se encontra misturado a crenças e preconceitos.
Ruína de Vila Bela
da Santíssima
Trindade-MT, 2006.
Foto: Laércio Miranda.
14 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
O senso crítico é a busca individualizada de uma idéia ou pensamento que leva
em consideração o conhecimento ou o embasamento sólido e consistente de um
conceito. Exemplo: você assiste a um filme e não concorda com o seu desfecho.
Neste momento, você estará utilizando o senso crítico ao fazer a análise dele.
Bom Senso: forma de agir que a pessoa assume, só se não tiver capacidade de
auto-critério e auto-avaliação. Veja o exemplo abaixo:
ECT diz contar com o bom senso para o fim da greve
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) informou hoje, em nota
oficial, que "vem adotando todas as medidas necessárias para a manutenção
dos serviços e conta com o bom senso de seus empregados para que
retornem ao serviço". Em sua defesa, a empresa argumentou ter concedido
abono salarial referente a 30% do salário, durante seis meses (dezembro de
2007 a maio de 2008), para 43.988 funcionários. A empresa informou também
que, desde junho de 2008, foi instituído um adicional permanente no valor de
R$ 260, beneficiando 57.951 empregados internos e externos. De acordo com a
ECT, o adicional teve custo total de R$ 390 milhões na folha de pagamento da
empresa.
Em assembléias realizadas hoje em todo o País, os grevistas decidiram manter a
paralisação iniciada na terça-feira passada, rejeitando proposta do presidente
do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro River Nogueira de Brito, feita pela
manhã, na audiência de conciliação, de suspensão da greve até que o
tribunal fizesse uma avaliação mais aprofundada das reivindicações dos
grevistas com a diretoria da empresa.
Os funcionários dos Correios reivindicam, entre outras mudanças, o fim do
Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), implementado em 1º de julho. O
Plano permite que funcionários sejam demitidos sob a alegação de baixa
produtividade. A Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de
Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), no entanto, afirma que a mudança
pode resultar em injustiças, uma vez que o desempenho dos funcionários será
avaliado por seus chefes diretos (A TARDE, 2008).
Você seria capaz identificar ocasiões nas quais teve
que usar o senso comum, crítico ou o bom senso? Reflita
então sobre tal situação, atentando para as definições
apresentadas.
Os obstáculos à passagem do senso comum ao senso crítico resultam da exclusão
do indivíduo das decisões importantes na comunidade em que vive, justificando,
portanto a importância do estudo desta disciplina no âmbito pessoal e profissional
de qualquer área.
Antes de iniciarmos o estudo da Sociologia, propriamente dita, faremos um passeio
rápido pelos períodos históricos, a fim de compreender como a sociedade,
explicava e entendia o mundo, sobretudo o social, antes da chegada da
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 15
Sociologia como ciência. Esta compreensão nos fará perceber que nem sempre
as pessoas puderam contar com a ciência para entender o mundo, e que em
determinados períodos no passado, a humanidade se deixou levar por
explicações ora falsas, ora míticas, sobre a realidade, além de nos ajudar também
a entender as bases da formação do pensamento sociológico.
Vejamos como isto se deu nos períodos históricos a seguir:
Na Antiguidade
Na Grécia Antiga, já havia o desejo de se entender a
sociedade. Enquanto os povos antigos só se interessavam pelo
mundo em que viviam, para entender o restante do universo,
os gregos criavam as diversas disciplinas, dentre elas à filosofia,
aquela conhecida como pré-socrática, e que representou um
esforço de racionalização e de desvinculamento do
pensamento mítico.
No entanto, se o pensamento racional se desliga do mito,
filosofia e ciência permanecem ainda vinculadas. Aliás, não
haverá separação entre elas antes do século XVII.
Sócrates, filósofo grego
(470-399 a. C.).
Na Idade Média
Embora este tenha sido o período em que os valores das sociedades antigas
se mesclaram aos dos povos germânicos, dando origem às bases da sociedade
contemporânea. Segundo os renascentistas, foi um período obscuro na história da
humanidade, durante o qual imperou o misticismo e a ignorância, a chamada
“Idade das Trevas”; à época, ocorreu na Europa um retrocesso artístico, intelectual,
filosófico e institucional, com a destruição dos valores da cultura greco-romana,
quando a Igreja Católica predominava nas explicações sobre a sociedade.
Na Idade Moderna
Este é o período conhecido como “Renascimento”, quando o homem volta aos
textos antigos e redescobre o prazer de investigar o mundo, descobrir as leis
de sua organização, independente de suas implicações religiosas e metafísicas.
Neste período, surgem pensadores como Nicolau Maquiavel, autor da obra O
Príncipe, dentre outros, além da doutrina do antropocentrismo que começa
a ganhar força; enquanto o pensamento medieval é predominantemente
teocêntrico (Deus como centro), o homem moderno coloca a si próprio no
centro dos interesses e decisões.
Fim da Idade Moderna para a Contemporânea
Já a partir do século XVIII, surgem na França os pensadores conhecidos como
Iluministas, que provocaram uma verdadeira revolução intelectual na história do
pensamento moderno; suas idéias caracterizavam-se pela valorização da razão,
eram partidários da idéia de progresso, rejeitavam as tradições e procuravam
SABER M
16 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
uma explicação racional para tudo.
Suas opiniões abriram caminho para diversos movimentos sociais, inclusive
a Revolução Francesa, que, pela sua amplitude, marcou o início do mundo
contemporâneo.
Para saber mais sobre a Idade das Trevas, assista ao filme O nome da Rosa, que
mostra o retrocesso intelectual e filosófico da sociedade, bem como a destruição
dos seus valores. Observe de que modo a ideologia da Igreja Católica
predominava nas explicações sobre a sociedade e a vida.
O NOME DA ROSA
Sinopse: Estranhas mortes começam a ocorrer num
mosteiro beneditino localizado na Itália, durante a
baixa Idade Média; as vítimas aparecem sempre
com os dedos e a língua roxos. O mosteiro guarda
uma imensa biblioteca, na qual poucos monges têm
acesso às publicações. A chegada de um monge franciscano (Sean Conery),
incumbido de investigar os casos, mostra o verdadeiro motivo dos crimes,
resultando na instalação do tribunal da Santa Inquisição.
Agora que já fizemos este passeio pela história, poderemos entender em que
contexto a Sociologia surgiu.
O CONTEXTO HISTÓRICO DO
SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA
As mudanças sociais ocorridas com a
consolidação do capitalismo, culminadas pela
Revolução Industrial na Inglaterra (séc. XVIII),
levaram os pensadores da sociedade
da época a indagações e elaborações de
teorias explicativas da dinâmica social e dos
diferentes posicionamentos políticos.
É nesse contexto de mudanças de organização
da sociedade caracterizada por novas relações
de trabalho que surge, portanto, a Sociologia.
Sociologia é a ciência social que estuda as relações sociais e as formas de
associação dos seres humanos, considerando as interações que ocorrem na
vida em sociedade. A Sociologia estuda os grupos sociais, a divisão da
sociedade em camadas ou classes sociais, a mobilidade social, os processos
de mudança, cooperação, competição e conflito que ocorrem nas
sociedades etc.; é a ciência social que estuda os fatos sociais.
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 17
A Sociologia é tida, por alguns, como a "ciência da crise", exatamente por surgir,
ou nos utilizarmos dela, geralmente, nos momentos das maiores crises nas
sociedades.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a consolidação do capitalismo e
entender a importância da Revolução Industrial para o surgimento da Sociologia,
leia atentamente as informações abaixo:
No decorrer da segunda metade do século XVIII, a Inglaterra passou por um
conjunto de mudanças que transformou completamente a estrutura da
sociedade.
No início, a Revolução Industrial envolveu, principalmente, a produção de bens
manufaturados. Algumas de suas características foram: o surgimento da fábrica,
que era conhecida por unidade industrial e que substituiu o antigo sistema de
produção doméstico, concentrando em um mesmo local de trabalho dezenas,
centenas e até milhares de trabalhadores; a substituição das ferramentas pelas
máquinas e da energia humana pela energia motriz (o carvão); a utilização, em
larga escala, do trabalho assalariado; e o surgimento de duas classes sociais com
interesses opostos e claramente definidos, a burguesia industrial e o proletariado.
Impulsionada pela acumulação primitiva de capital, a Revolução Industrial
redimensionou e consolidou o sistema capitalista, colocando fim à
preponderância do capital mercantil sobre o industrial, o que provocou
mudanças de comportamento, de consumo e de relações de trabalho, gerando,
por fim, o que se pode chamar de caos social, incompreendido naquele
momento pela sociedade européia.
Em meio a todas essas transformações que ocorriam na Europa Ocidental, houve
a consolidação do sistema capitalista e a valorização da ciência, contrapondo as
explicações míticas sobre o mundo. A partir da abertura de mercados mundiais, o
surgimento de novas classes na sociedade e a crise da classe proletária versus o
enriquecimento da classe burguesa, a Sociologia começou a ser pensada como
uma ciência que surgiu para dar respostas mais elaboradas sobre o caos que
estava se formando.
A Sociologia e suas teorias que vamos estudar se constituem em ferramentas de
reflexão sobre a sociedade industrial e científica que surgia.
Augusto Comte afirmava que a sociedade funcionava como
um organismo, no qual cada parte tem uma função
específica, contribuindo para o funcionamento do todo.
Segundo ele, ao longo da história, a sociedade teria passado
por três grandes fases: a teológica, a metafísica e a positiva
ou científica. Na primeira, as pessoas recorreriam à vontade
Foi nesse contexto que o filósofo e matemático francês Augusto
Comte, entre 1830 e 1842, publicou sua primeira grande obra, na
qual expõe os princípios fundamentais de sua filosofia e de sua
teoria da História: Curso de Filosofia Positiva, composta de seis
volumes. A partir de então, sua doutrina passou a ser conhecida
como Positivismo.
18 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
dos deuses para explicar os fenômenos naturais; na segunda, utilizavam conceitos
mais abstratos, como "natureza"; na terceira, que corresponderia à sociedade
industrial, o conhecimento se baseava na descoberta das leis objetivas que
determinam os fenômenos.
Foi ele o criador da palavra Sociologia, para designar a ciência que deveria
estudar a sociedade. Por essa razão, é considerado o “pai” da Sociologia.
Sua doutrina, o Positivismo, exerceu forte influência sobre a oficialidade do
Exército brasileiro nas últimas décadas do século XIX. Por isso, um dos lemas
positivistas está estampado na nossa bandeira: “Ordem e Progresso”.
Portanto, o Positivismo foi uma linha de pensamento que glorificou a sociedade
européia do século XIX, em franca expansão. Por ela, buscava-se a resolução dos
conflitos sociais por meio da exaltação à coesão, à harmonia natural entre os
indivíduos e ao bem-estar do todo social.
Positivismo significa a superioridade da ciência e no poder de explicação dos
fenômenos de maneira desprendida da religiosidade, como era comum se
pensar naquela época. E tem mais: como positivista, Comte acreditava que a
ciência deveria ser utilizada para ordenar o social, pois acreditava que a
sociedade estava em desordem.
A história do Positivismo no Brasil tem importância especial para a evolução das
idéias no país. Foi sob o patrocínio do Positivismo que, em grande parte, se fez a
preparação teórica da implantação da república.
O Pensamento Positivista
O Positivismo no Brasil
Você percebeu como é importante olhar o
passado para se compreender o presente?
O aparecimento da Sociologia significou que as questões referentes às relações
entre os homens deixaram de ser apenas matéria religiosa e do senso comum,
mas passaram a interessar também aos cientistas. A constituição desse campo
do conhecimento significou, antes de qualquer coisa, que as relações entre os
homens mereciam ser conhecidas e formuladas por uma nova forma de
linguagem e discurso, chamada de científica e que, na sociedade moderna,
adquire o estatuto de “verdade”.
Foi nesse momento que o homem começou a elaborar métodos e instrumentos
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 19
de análise capazes de explicar e interpretar sua experiência social de maneira
científica. Foi como criar, assim como fazem as demais ciências, métodos de
averiguação e medição, e fazer formulações sobre a sociedade, que
poderão ser comprovadas empiricamente, através da observação e
experimentação, de modo a tornar a ação social humana explicável em termos
de regularidade e previsões.
Então, tudo que fosse relativo às ligações do homem com seus semelhantes
passava a outra esfera de abstração, a outra maneira de formular problemas,
ligada à necessidade de descobrir leis de interpretação e previsão dos
acontecimentos.
Desde o século XIX, quando a Sociologia foi criada ou reconhecida como campo
de conhecimento explorável pelo procedimento científico, até a atualidade,
inúmeros estudos se desenvolveram. Como nas demais ciências, estabeleceu-se
uma comunicação permanente entre pesquisadores, permitindo um acúmulo de
princípios e informações, de modo a submeter as teorias a comprovações,
questionamentos e revisão.
Criou-se, assim, um vocabulário próprio com conceitos que designam aspectos
precisos da vida social. Os resultados das pesquisas sociológicas e desse
vocabulário que as acompanha se expandiram de tal forma que, hoje, grande
parte dele faz parte da vida cotidiana, como: contexto social, movimentos sociais,
camadas sociais, conflitos sociais, etc.
Quando começam a estudar Sociologia pela primeira vez, muitos estudantes
ficam confusos com a diversidade de abordagens que encontram. A Sociologia
nunca foi uma disciplina em que há um corpo de idéias que todos aceitam como
válido. Os sociólogos freqüentemente discutem entre si sobre como os resultados
das pesquisas podem ser mais bem interpretados. Por que acontece assim? A
resposta está ligada à própria natureza da área, pois a Sociologia diz respeito às
nossas vidas e ao nosso próprio comportamento, e estudar nós mesmos é o mais
complexo e difícil esforço que podemos empreender.
É por isso que, nos próximos tópicos, tentaremos compreender o pensamento de
três importantes pioneiros desta ciência social: Émile Durkheim, Max Weber e Karl
Marx.
- Com base no que vimos até aqui, que relação há entre
o capitalismo e a existência de uma elite na sociedade?
- Você já reparou no lema da nossa bandeira? O Brasil
pode ser visto como uma sociedade que se orienta pelo
cumprimento de "Ordem e Progresso" nela inscritos?
A seguir, você verá alguns dos conceitos elaborados por Émile Durkheim, Max
Weber e Karl Marx, como cidadãos diante das organizações, das contradições e
dos processos políticos e sociais.
20 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
O francês David Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o
fundador da Sociologia Moderna. Foi um dos primeiros a estudar
profundamente fenômenos sociais. Seu principal trabalho foi dar
à Sociologia uma reputação científica.
Uma das primeiras coisas que Durkheim fez foi criar regras que
tornaram a Sociologia capaz de estudar os acontecimentos
sociais. Para tanto, o primeiro passo foi saber exatamente qual o
objeto de estudo desta nova ciência, isto é, o que a Sociologia
deveria estudar.
A seguir, introduziremos você nas teorias sociológicas clássicas, com o objetivo de
percebermos que as mudanças que ocorrem nas sociedades levaram os
pensadores, em suas épocas, a indagações e elaborações de teorias explicativas
da dinâmica social, sob diferentes olhares e posicionamentos políticos, que nos
ajudam a nos localizar e a nos colocar melhor. Saberá, também, como se deu a
produção sociológica brasileira.
Vejamos, então, alguns dos conceitos elaborados por Émile Durkheim, Max Weber
e Karl Marx.
A SOCIOLOGIA CLÁSSICA
DE ÉMILE DURKHEIM
O sistema sociológico de Durkheim baseia-se em quatro princípios fundamentais:
A Sociologia é uma ciência independente das demais ciências
sociais e da Filosofia;
A realidade social é formada pelos fenômenos coletivos, chamada
por Durkheim de fatos sociais, considerados “coisas”;
A causa de cada fato social deve ser procurada entre os fenômenos
sociais que o antecedem;
Os fatos sociais são exteriores aos indivíduos e formam uma realidade
específica que exerce sobre eles um poder coercitivo.
De acordo com Durkheim, os fatos sociais são os modos de pensar, sentir e agir
de um grupo social. Embora eles sejam exteriores às pessoas, são introjetados
pelo indivíduo e exercem sobre ele um poder coercitivo. Para definirmos o que
vem a ser o fato social, baseamo-nos nas três características dadas a seguir:
Generalidade – o fato social é comum a todos os membros de um grupo ou à
sua grande maioria.
Exterioridade – o fato social é externo ao indivíduo, existe independentemente
de sua vontade.
Coercitividade – os indivíduos se sentem pressionados a seguir o comportamento
estabelecido.
Dadas essas características, para Durkheim, os fatos sociais podem ser estudados
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 21
objetivamente, como “coisas”. Assim como o fazem a Biologia ou a Física que
estudam os fatos da natureza, a Sociologia faz o mesmo com os fatos sociais.
Para que você possa entender melhor a concepção de Durkheim:
Para Durkheim, a sociedade prevalece sobre o indivíduo. A sociedade é um
conjunto de normas de ação, de pensamento e de sentimento que não existe
apenas na consciência dos indivíduos; é construído exteriormente, isto é, um
senso coletivo que se constrói em ambiente coletivo, em âmbito exterior ao da
consciência individual. Ou seja: na vida em sociedade, o homem defronta-se
com regras de conduta que não foram diretamente criadas por ele, mas
existem e devem ser aceitas na vida em sociedade, devendo ser seguidas por
todos.
Um indivíduo isolado não cria leis nem pode modificá-las. Tem de aceitá-las, sob
pena de sofrer castigos por violá-las. Assim, para Durkheim, é a sociedade, é a
coletividade que organiza, condiciona e controla as ações individuais.
Procure na Internet, em jornais, livros ou revistas a origem dos
suicídios atuais para discutirmos à luz do que pensa Durkheim.
Verifique sua teoria, analisando alguns fatos; por exemplo:
problemas financeiros e de saúde aumentam suicídios no Japão.
Disponível em: .
Agora, para que você possa entender melhor as características dos fatos sociais,
observe os seguintes exemplos. O casamento possui generalidade, pois, salvo
algumas exceções, a maioria das pessoas deseja se unir a alguém; possui
exterioridade, pois independente de uma ou outra pessoa não quererem se casar,
ainda assim as pessoas continuarão se casando, portanto não depende apenas
de uma pessoa para existir, mas precisa da maioria; e, por fim, possui
coercitividade, pois existe certa pressão social para que nos vejamos “obrigados”
a nos casar, sob pena de sofrermos os comentários do gênero: “ficou pra titia?”,
“é cheio de manias por que não se casou...”, etc. Portanto, todo fato que reúna
essas três características é denominado social, para Durkheim, e pode ser
estudado pela Sociologia. Perceba, então, como essas regras se aplicam não
apenas ao casamento, mas, da mesma maneira, ao trabalho, à escola, ao modo
de se vestir, comer, enfim, aos costumes, em geral.
Para Durkheim, é a sociedade que influencia o indivíduo. Nesse sentido, a
sociedade só pode ser entendida pela própria sociedade. Toda a teoria
sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais têm existência
própria e independem daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular.
Embora exista uma consciência individual, é possível notar que, dentro de
qualquer grupo ou sociedade, existem formas padronizadas de comportamento
e pensamento. A esta constatação, Durkheim chama de consciência coletiva.
Segundo ele, portanto, consciência coletiva é o “conjunto das crenças e dos
sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma
um sistema determinado com vida própria” (DURKHEIM, [19--], p. 342).
É a consciência coletiva que determina o que é considerado certo ou errado
22 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
numa sociedade, pois aparece como um conjunto de regras fortes e
estabelecidas que atribui valor e delimita os atos individuais.
Durkheim acredita que a sociedade está em constante evolução, o que se
justificaria pelo aumento dos papéis sociais dentro dela.
Acreditando nesta evolução das sociedades, Durkheim estabelece a passagem
do que trata como solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, como
explicação para a transformação de toda e qualquer sociedade.
Papel Social
Solidariedade Mecânica
Solidariedade Orgânica
é a função ou o comportamento que o grupo social espera de
qualquer pessoa que ocupa determinado status social.
é aquela das sociedades primitivas, pré-capitalistas,
em que os indivíduos se identificam através da consciência coletiva, ligados
pelos costumes, crenças e sentimentos comuns. São as sociedades com
poucos papéis sociais, onde existe pouco espaço para individualidades.
Mecânica, no sentido de que as atitudes e pensamentos são quase que
automáticos e não exigem muita reflexão pessoal.
é aquela das sociedades capitalistas, mais
complexas, nas quais existem muitos papéis sociais. Pela acelerada divisão
do trabalho social, os indivíduos se tornaram interdependentes, o que garante
a união social, a consciência coletiva, e dá espaço à autonomia pessoal.
Orgânica, no sentido de organismo, onde, devido à variedade de atividades,
todos deveriam cooperar entre si.
A partir daí, Durkheim vê a sociedade como um grande organismo vivo, onde
cada um ou cada instituição cumpre seu papel como se fosse um órgão dentro
do grande organismo, que seria a própria sociedade. Cada vez que algum órgão
falha, isto é, deixa de cumprir seu papel, o organismo, no caso a sociedade, fica
doente, o que ele trata como anomia. Para ele, a grande doença social seria o
egoísmo das pessoas e a causa dessa doença seria a falta de normas e controle
sobre a individualidade que, nas sociedades de solidariedade mecânica,
funcionam com maior eficácia. A Sociologia teria exatamente o papel de
encontrar os fatos sociais com anomia (doença) e apontar uma solução.
As obras de Durkheim foram importantíssimas para definir os métodos de trabalho
do sociólogo e estabelecer os principais conceitos desta nova ciência.
Embora positivistas, os estudos de Durkheim são relevantes para a Sociologia
contemporânea, pois, preocupado com as leis gerais capazes de explicar a
evolução das sociedades humanas, ele também pensou nas particularidades da
sociedade em que vivia, nos mecanismos de coesão dos pequenos grupos e na
formação de sentimentos comuns resultantes da convivência social. Diferenciou
instâncias da vida social e seu papel na organização social, como a educação,
a família e a religião, elaborou um conjunto coordenado de conceitos e de
técnicas de pesquisa que, embora norteado por princípios das ciências naturais,
mostravam o discernimento de um objeto de estudo próprio e de meios
adequados para interpretá-lo.
Sua contribuição nos dá referenciais para refletirmos sobre as sociedades, ajudanos
a pensar e interpretar os acontecimentos.
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 23
A SOCIOLOGIA CLÁSSICA
DE MAX WEBER
SABER M
Para que você possa entender melhor os conceitos de
Durkheim, leia as suas obras mais importantes. Dentre
elas, destacamos: A divisão do trabalho social, As regras
do método sociológico e O suicídio. Essas obras clássicas
você poderá encontrar nas bibliotecas de seu município.
Leia também o texto abaixo e reflita:
Durkheim e o Método Sociológico
Durkheim deslocou o problema para um terreno estritamente formal,
único em que ele poderia ser estabelecido em uma ciência em plena
formação. Uma observação bem feita em geral deve muito a uma teoria
constituída, mas ela não é o produto necessário dos conhecimentos já obtidos.
Ao contrário, representa a via inevitável para a consecução destes. Daí a
conclusão lógica: os sociólogos se beneficiarão das teorias na medida em que
a investigação sociológica progredir. Até lá, e mesmo depois, precisam saber
proceder a descrições exatas, a observações bem feitas e, em particular,
devem aprender a extrair, da complexa realidade social, os fatos que
interessam precisamente à Sociologia. Para atingir esses fins, não necessitam
de uma teoria sociológica, propriamente falando. Mas de uma espécie de
teoria sociológica, o que é outra coisa e presumivelmente algo exeqüível e
legítimo. Nesse sentido (e não em um plano substantivo) é que a Sociologia
poderia aproveitar a lição e a experiência das ciências mais maduras:
transferindo para o seu campo o procedimento científico usado nas ciências
empírico-indutivas, de observação ou experimentais. Isso seria fácil, desde que
a ambição inicial se restringisse à formulação de um conjunto de regras
simples e precisas, aplicáveis à investigação sociológica dos fenômenos
sociais.
Do que foi exposto, conclui-se que Durkheim se propôs a tarefa de realizar uma
teoria da investigação sociológica. De fato, ele empreendeu tal tarefa. E foi o
primeiro sociólogo que conseguiu atingir semelhante objetivo, em condições
difíceis e com um êxito que só pode ser contestado quando se toma uma
posição diferente em face das condições, limites e ideais de explicação
científica na Sociologia (FERNANDES, [19--], p. 77-78).
Nascido em Erfurt, na Turíngia, Alemanha, o
sociólogo e cientista político Max Weber (1864-
1920) é considerado um dos mais importantes
pensadores modernos, um dos fundadores
clássicos da Sociologia. Criou uma nova disciplina,
a Sociologia da Religião, através da qual
desenvolveu estudos comparados entre a história
econômica e a história das doutrinas religiosas.
24 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
Foi também um dos primeiros cientistas sociais a chamar a atenção para o
fenômeno da burocracia, não só no Estado Moderno, mas também ao longo da
história. De acordo com ele, a Sociologia deveria estudar o sentido da ação
humana individual, que deve ser buscado pelo método da interpretação e da
compreensão.
As teorias de Weber exerceram grande influência sobre as ciências sociais a partir
da década de 1920.
Ao contrário de Durkheim e de August Comte, Weber interpretava a sociedade
não através dela mesma, mas sim “olhando” para o indivíduo que nela vive, pois
entendia que aquilo que ocorre na sociedade seria a soma das ações das
pessoas.
O contraste entre o Positivismo, de Durkheim, e o Idealismo, de Weber, se expressa,
entre outros elementos, nas maneiras diferentes como cada uma dessas correntes
encara a história.
Para o Positivismo, a história é o processo universal de evolução da humanidade,
cujos estágios o cientista pode perceber pelo método comparativo. Essa forma de
pensar faz desaparecerem as particularidades históricas, e os indivíduos são
dissolvidos em meio a forças sociais impositivas.
Já para os idealistas, a pesquisa histórica é essencial para a compreensão das
sociedades. Baseada na coleta de documentos e no esforço interpretativo das
fontes, permite o entendimento das diferenças sociais, que seriam, para Weber, de
gênese e formação, e não de estágios de evolução, como pensava Durkheim.
Para Weber, portanto, o conhecimento histórico, visto como a busca de
evidências, torna-se um poderoso instrumento para o cientista social.
Ele não achava que uma sucessão de fatos históricos fizesse sentido por si só. Era
preciso um esforço interpretativo do passado e de sua repercussão nas
características peculiares das sociedades contemporâneas; seria essa atitude de
compreensão que permitiria ao cientista atribuir aos fatos um sentido social e
histórico. Através desse raciocínio, Weber desenvolveu o que chamamos de
Sociologia Compreensiva, isto é, uma teoria que entende a sociedade a partir da
compreensão das ações dos indivíduos.
Partindo do individual, ele pretende chegar ao geral, ao social, pois, para ele, não
é a sociedade que influencia o indivíduo, mas as pessoas que, individualmente,
fazem a sociedade existir e acontecer.
Weber estabelece conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e
seus efeitos. Para isso, seria necessário compreender o sentido da ação do
indivíduo, esquematizar, portanto, algumas probabilidades de ações, que Weber
chama de tipos de ação social. Segundo ele, as pessoas podem atuar de acordo
com três tipos básicos de ação social:
Ação Social Racional
Ação Social Afetiva
– que ocorre para obter um objetivo, o indivíduo age
porque acredita em valores. Exemplo: “estudar para passar no vestibular”.
– que ocorre pelo afeto que uma pessoa possui por outra
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 25
ou ainda por algo. Exemplo: “comprar flores para a namorada”.
– que ocorre por costume ou hábito. Exemplo:
“tomar chimarrão”.
Ação Social Tradicional
O motivo que transparece na ação social permite desvendar seu sentido, que é
social na medida em que cada indivíduo age, levando em conta a resposta ou a
reação de outros indivíduos.
A tarefa do cientista é descobrir os possíveis sentidos das ações humanas,
presentes na realidade social que lhe interesse estudar.
O caráter social da ação individual decorre da interdependência dos indivíduos.
Um sempre age em função de sua motivação e da consciência de agir em
relação a outros, além de a ação social gerar efeitos sobre a realidade em que
ocorre, e estes acabam escapando ao controle e à previsão do primeiro que
deu início à ação.
Para a Sociologia, fica o trabalho de entender o sentido produzido pelos diversos
agentes e todas as suas conseqüências, estabelecer as conexões entre motivos e
ações sociais, o que revela as diversas instâncias da ação social: políticas,
econômicas, religiosas e familiares, pois é o indivíduo que, por meio dos valores
sociais e de sua motivação, produz o sentido da ação social.
Outro enfoque importante da teoria sociológica de Weber é a distinção que ele
faz entre ação social e relação social, pois, para que se estabeleça uma relação
social, é preciso que o sentido seja compartilhado, isto é, que haja uma
interação, uma reciprocidade. Já na ação social, isso não ocorre, a ação é
individual.
Portanto, para a Sociologia weberiana, os acontecimentos que integram o
social têm origem nos indivíduos.
Outro aspecto da teoria sociológica de Weber trata do tipo ideal. Para poder
explicar os fatos sociais, ele construiu uma teoria um tanto quanto abstrata,
partindo do estudo sistemático das diversas manifestações particulares até
chegar a um modelo, acentuando aquilo que lhe pareça característico. É a
síntese daquilo que é essencial na diversidade das manifestações da vida social,
permitindo a identificação de exemplares em diferentes tempos e lugares.
O tipo ideal de Max Weber corresponde ao que Florestan Fernandes
definiu como conceitos sociológicos construídos interpretativamente como
instrumentos de ordenação da realidade. O conceito, ou tipo ideal, é
previamente construído e testado, depois aplicado a diferentes situações
em que dado fenômeno possa ter ocorrido. À medida que o fenômeno se
aproxima ou se afasta de sua manifestação típica, o sociólogo pode
identificar e selecionar aspectos que tenham interesse à explicação como,
por exemplo, os fenômenos típicos “capitalismo” e “feudalismo” (COSTA,
2002, p. 75).
26 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
O tipo ideal não é um modelo perfeito a ser buscado pelas formações sociais
históricas, mas sim deve servir como um instrumento de análise científica, em que
podemos conceituar fenômenos, e identificar suas manifestações na realidade
observada, além de podermos compará-las.
Weber era protestante e, segundo a lógica de seu pensamento, o capitalismo
teve parte de sua base inicial na ação social dos membros que seguiam a ética
protestante calvinista. Um de seus trabalhos mais conhecidos é A ética protestante
e o espírito do capitalismo, no qual relaciona o papel do protestantismo na
formação do comportamento típico do capitalismo ocidental moderno. Escreveu,
também, Economia e sociedade.
Ele faz um estudo comparativo pelo qual demonstra que as sociedades onde a
ética protestante predominava tinham, por essa razão, uma ética de vida voltada
ao trabalho e à disciplina muito forte, pois acreditavam que trabalho e sucesso
seriam indícios de que, além de glorificar Deus, garantiriam sua salvação, logo o
capitalismo se desenvolveria francamente. Para Weber, ser capitalista é sinônimo
de ser disciplinado no que faz. Seria pela grande dedicação ao trabalho que
resultaria o sucesso e o enriquecimento, herança da ética protestante.
Já nas sociedades orientais, o capitalismo não se desenvolveu tanto, porque as
religiões têm uma imagem de Deus como sendo parte do mundo. Ao contrário da
ética protestante ocidental, a idéia e a prática de não se viver apenas para o
trabalho não predomina, mas de poder aproveitar tudo o que se ganha pelo
trabalho com as coisas desta vida.
Vivendo os problemas de seu país, Weber pôde trazer uma nova visão mais
independente das ciências exatas e naturais. Foi capaz de compreender a
especificidade das ciências humanas, vendo o homem como sujeito às leis de
ação e comportamento próprios. Um dos aspectos importantes do seu trabalho foi
expor as relações entre sociedade e religião e desvendar as particularidades do
capitalismo.
Motivo e Sentido da Ação Social
No raciocínio de Weber, o conceito de “motivo” permite estabelecer uma ponte
entre sentido e compreensão. Do ponto de vista do agente, o motivo é o
fundamento da ação; para o sociólogo, cuja tarefa é compreender essa ação, a
reconstrução do motivo é fundamental, porque, da sua perspectiva, ele figura
como a causa da ação. Numerosas distinções podem ser estabelecidas aqui, e
Weber realmente o faz. No entanto, apenas interessa assinalar que, quando se
fala de sentido na sua acepção mais importante para a análise, não se está
cogitando da gênese da ação, mas sim daquilo para o que ela aponta para o
objetivo visado nela; para o seu fim, em suma.
Isso sugere que o sentido tem muito a ver com o modo como se encadeia o
processo de ação, tomando-se a ação efetiva dotada de sentido como um meio
para alcançar um fim, justamente aquele subjetivamente visado pelo agente.
Convém salientar que a ação social não é um ato isolado, mas um processo, no
qual se percorre uma seqüência definida de elos significativos (admitindo-se que
não haja interferência alguma de elementos não pertinentes à ação em tela, o
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 27
que jamais ocorre na experiência empírica e só é pensável em termos típicoideais).
Basta pensar em qualquer ação social (por exemplo, despachar uma
carta) para visualizar isso. Os elementos desse processo articulam-se naquilo que
Weber chama de “cadeia motivacional”: cada ato parcial realizado no processo
opera como fundamento do ato seguinte, até completar-se a seqüência (COSTA,
2002, p. 97-98).
Jovem, solteiro e ansioso para ver Alá
Terrorista suicida islâmico se tornou a mais temida figura da sociedade
israelense. Sua habilidade em disfarce é tanta que os 1,2 mil soldados
convocados para guarnecer os pontos de ônibus de Jerusalém receberam
ordens de ficar especialmente atentos quando virem alguém trajando
uniforme do próprio Exército.
Acredita-se que os autores dos dois primeiros atentados a bomba, que
iniciaram o mais recente ciclo de carnificina de civis no dia 25, estavam
disfarçados de soldados. Um até usava brinco, muito em voga entre alguns
judeus.
Segundo um perfil elaborado por israelenses especialistas em segurança, os
terroristas suicidas são na maioria solteiros, com idade entre 18 e 24 anos e de
família pobre. Tendem a ser fanáticos no comportamento e nas crenças. Suas
motivações incluem o desejo de se igualar ao êxito de outros atacantes ou de
vingar ataques sofridos por suas famílias.
Clérigos do grupo Hamas desempenham importante papel em seu
treinamento, repisando a promessa contida no alcorão de que mártires terão
um paraíso especial, no qual cada combatente tombado recebe 72 noivas
virgens. Também dizem aos suicidas que vagas no paraíso serão reservadas às
suas famílias que, na terra, recebem assistência de entidades beneficentes
ligadas ao Hamas e à Jihad Islâmica.
Depois que um terrorista suicida de Gaza voou pelos ares, os parentes
encontraram freqüentes referências ao paraíso em seus cadernos. Ele
escreveu muito sobre o desejo de morrer, de conhecer Deus como mártir e
viver uma vida muito melhor.
Segundo oficiais israelenses, a carga explosiva de alta potência é geralmente
amarrada ao corpo e detonada por um dispositivo de tempo eletrônico. Os
terroristas são levados com freqüência para inspecionar os alvos de seus
ataques. Homens solteiros são escolhidos para reduzir o risco de um suicida
revelar um ataque ao dizer adeus à sua mulher.
Os autores dos atentados estudam muitas vezes em escolas mantidas por
instituições de caridade e dirigidas pelo Hamas. No geral, antes de cada
missão celebra-se sessão final na mesquita, onde o atacante é fortalecido
pelos clérigos para sua missão. No Líbano, alguns também receberam drogas.
A chocante propensão dos jovens islâmicos ao sacrifício foi revelada segundafeira
em Al Fawwar, um campo de refugiados perto de Hebron, terra natal dos
dois atacantes responsáveis pelas bombas em Jerusalém e Ashkelon. Os
israelenses descobriram que, dos 5 mil moradores, 40 haviam se apresentado
como voluntários para ser terroristas suicidas (WALKER, 1994).
28 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
SABER M
Aplicando à análise da notícia o que aprendemos
sobre a Sociologia weberiana, reflita acerca das
seguintes questões:
A qual ação social a notícia faz referências?
Que valores induzem a ação do terrorista islâmico?
Que motivos levam o terrorista islâmico a agir?
Destaque os aspectos econômicos, políticos e
psicológicos desse fenômeno.
CENTRAL DO BRASIL
BRASIL, 1988.
Direção: Walter Salles.
Duração: 113 min.
Elenco: Fernanda Montenegro, Marilia Pêra e Vinicius de
Oliveira.
Sinopse: Este filme, indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro, conta a
história do envolvimento de Dora, mulher que escreve cartas para analfabetos
na estação Central do Brasil, com um menino de 9 anos, Josué, que perde a
mãe. O filme mostra a viagem que ambos empreendem com a intenção de
achar o pai do garoto.
Perceba como é possível identificar nessa história a idéia de Weber a respeito
da ação social e o que ele propõe como relação social.
Para Durkheim, enquanto a ênfase da análise recai sobre a
sociedade, para o sociólogo alemão Max Weber ela deve
centrar-se nos atores e em suas ações. Isso significa que, para
Weber, a sociedade não é algo exterior e superior aos
indivíduos como para Durkheim. Para ele, a sociedade pode
ser compreendida de acordo com um conjunto das ações
individuais reciprocamente referidas. Por isso, ele define a ação
social como objeto da Sociologia.
Vamos falar agora de quem também viu a consolidação da
sociedade capitalista e fez uma forte crítica a ela: o alemão,
filósofo e economista Karl Marx (1818-1883).
A SOCIOLOGIA CLÁSSICA
DE KARL MARX
Filósofo, cientista social, economista e revolucionário alemão,
Karl Heinrich Marx (1818 -1883) foi o principal idealizador do
socialismo e do comunismo revolucionário. Sua doutrina propõe
a derrubada da classe dominante, denominada por ele de
burguesia, por meio de uma revolução do proletariado e a
No modo de produção capitalista, o objetivo é
justamente a acumulação de riquezas e, para
Marx, ela viria da força do trabalhador.
Marx deu o nome de mais-valia à máquina
que faria o capitalismo funcionar, isto é, o
excedente que sai da força de cada
trabalhador. Para entender melhor: uma coisa
é o capitalista. Este valor a mais produzido pelo
operário e que fica com o patrão é o que Marx
define como mais-valia.
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 29
criação de uma sociedade sem classes, na qual os meios de produção passem a
ser propriedade de toda a coletividade.
Marx foi um dos responsáveis por promover uma discussão crítica da sociedade
capitalista, bem como da origem dos problemas sociais que este tipo de
organização social originou.
Com o objetivo de entender o capitalismo, Marx produziu obras de Filosofia,
Economia e Sociologia, na intenção de propor uma transformação social.
Para entendermos o pensamento de Marx, partiremos de uma frase dita por ele:
“A história de todas as sociedades tem sido a história da luta de classes.”
Para Marx, existem apenas duas classes sociais: a burguesia, que é aquela que
tomou posse dos meios de produção, enriqueceu e também obteve o controle do
Estado, isto é, o controle político, criou leis para proteger a propriedade privada e
manter-se no poder, além de difundir sua ideologia de classe; e o proletariado,
que, sem os meios de produção e voz política na sociedade, transformou-se em
parte fundamental no enriquecimento da burguesia, pois oferecia mão-de-obra
para as fábricas.
Meios de Produção
Modo de Produção
– São os meios materiais utilizados por qualquer tipo de
trabalho para a produção de bens, como máquinas, ferramentas, instalações,
formas de energia, a terra, matérias-primas, etc.
– É o termo criado por Marx para designar o conjunto
formado pelas forças produtivas e pelas relações de produção de uma
sociedade, em um período histórico determinado. É a maneira como a
sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e como os distribui.
Segundo Marx, teriam existido os modos de produção comunal primitivo,
escravista, asiático, feudal e capitalista, e ele ainda previu a formação de um
modo de produção que superaria o capitalismo, que seria o modo socialista
de produção.
Façamos um exemplo:
Numa marcenaria, por mês, um trabalhador produz 20 mesas e o seu salário é de
R$ 800,00. O dono vende cada mesa por R$ 200,00, o que dá um total de R$
4.000,00. Destes R$ 4.000,00 ganhos, diminuímos o salário de R$ 800,00, menos a
30 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
Para Marx, as condições das relações de trabalho dentro do sistema capitalista
colocam o trabalhador numa condição de alienado, pois ele produz e é
separado do que produziu, portanto não tem controle sobre seu próprio trabalho.
Etimologicamente, a palavra alienação vem do latim alienare, alienus, que
significa “que pertence a um outro”. Sob determinado aspecto, alienar é tornar
alheio, transferir para outrem o que é seu. Segundo Marx, que analisou esse
conceito básico, a alienação não é puramente teórica, pois se manifesta na vida
real do homem, na maneira pela qual, a partir da divisão do trabalho, o produto
do seu trabalho deixa de lhe pertencer e todo o resto é decorrência disto.
Além da alienação, outro fator que segundo Marx, fortalece as relações
estabelecidas pelo capitalismo é a ideologia.
matéria-prima, impostos e encargos que daria em torno de R$ 1.000,00, o que
resulta na acumulação de R$ 2.200,00 para o dono da marcenaria. Este acúmulo
é a mais-valia ou lucro. Com esta descrição, Marx configura o caráter de
exploração do sistema capitalista. De imediato, o operário não é capaz de
reverter o quadro, porque se encontra alienado.
A ideologia tem influência marcante nos jogos do poder e na manutenção dos
privilégios que dão forma à maneira de pensar e de agir dos indivíduos na
sociedade. A ideologia seria de tal forma traiçoeira que até aqueles em nome de
quem ela é exercida não lhe perceberiam o caráter ilusório. Além disso, impede
que a classe trabalhadora tenha consciência da própria submissão, porque
camufla a luta de classes quando faz a representação ilusória da sociedade,
mostrando-a como una e harmônica.
Para entender o capitalismo e explicar a organização econômica, Marx
desenvolveu uma teoria que procura dar conta de toda forma produtiva criada
pelo homem, em todo tempo e lugar. A teoria marxista é chamada de
Materialismo Histórico. Dentro dessa visão, a matéria é um dado primário e é a
fonte da consciência, isto é, a consciência do homem, mesmo sendo
determinada pela matéria e estando historicamente situada, não é pura
passividade, pois o conhecimento do determinismo liberta o homem por meio da
ação deste sobre o mundo, possibilitando inclusive a ação revolucionária.
O senso comum pretende explicar a história pela ação dos grandes homens, das
grandes idéias, ou mesmo por Deus. Marx inverte esse processo; no lugar das
idéias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. Explica que,
Ideologia - É a expressão criada no começo do século XIX pelo francês Destutt
de Tracy com o significado de ciência que tem por objeto o estudo das idéias.
Mais tarde, Karl Marx e Friedrich Engels deram a ela o sentido de consciência
social de uma classe dominante, ou conjunto de idéias falsas e enganadoras
destinadas a mascarar a realidade social aos olhos das classes dominadas,
encobrindo as relações de dominação e exploração a que estão submetidas
essas classes. Nessa acepção, ideologia teria o mesmo significado de "falsa
consciência". Atualmente, o termo é empregado com o sentido de conjunto
de idéias dominantes em uma sociedade, ou como "visão de mundo" de uma
classe social, de uma sociedade ou de uma época (OLIVEIRA, [19--], p. 249).
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 31
pela estrutura material da sociedade, a idéia é algo secundário, não no sentido
de menos importante, mas no de algo derivado das condições materiais.
Para estudar a sociedade, devemos partir da forma como os homens de
determinado agrupamento social produzem os bens materiais necessários à sua
vida e não do que dizem, imaginam ou pensam.
Marx parte do princípio de que a estrutura de uma sociedade reflete a forma
como os homens organizam a produção dos bens e esta, por sua vez, engloba as
forças produtivas, que são as condições materiais de toda a produção (objetos,
instrumentos, matéria-prima) e as relações de produção, que têm o homem como
principal elemento responsável por fazer a ligação entre a natureza, a técnica e
os instrumentos. Portanto, as relações de produção são as formas pelas quais os
homens se organizam para executar a atividade produtiva.
Por essa lógica, podemos dizer que a classe dominante, a burguesia, tem maiores
oportunidades de fazer sua história como deseja, pois tem o poder econômico e
político nas mãos, ao contrário da classe proletária que, por causa da estrutura
social, está desprovida de meios para tal transformação.
O sucesso das teorias marxistas, quer no campo da ciência política, econômica e
social, quer no campo da organização política, se deve ao universalismo de seus
princípios e ao caráter totalizador que imprimiu às suas idéias.
Além disso, há a objetividade científica que, para Marx, só se coloca enquanto
consciência crítica. A ciência, assim como a ação política, só pode ser
verdadeira, e não ideológica, se refletir uma situação de classes e,
conseqüentemente, uma visão crítica da realidade.
A idéia de uma sociedade “doente” ou “normal”, preocupação dos cientistas
sociais positivistas, desaparece em Marx. Para ele, a sociedade é constituída de
relações de conflito e é de sua dinâmica que surge a mudança social. Fenômenos
como luta, conflito, revolução e exploração são constituintes dos diversos
momentos históricos e não disfunções sociais.
Entre suas principais obras, estão: Miséria da Filosofia, O dezoito brumário de Luís
Bonaparte, e O capital; com Engels, escreveu: A sagrada família, A ideologia
alemã, e o Manifesto comunista.
A Sociologia, como vimos até aqui, abrange uma variedade de concepções
teóricas. Algumas vezes, o desacordo entre as posições teóricas é bastante radical,
mas essa diversidade é muito mais um sinal da força e da vitalidade do assunto do
que de sua fraqueza.
SABER M
Assista ao filme Tempos Modernos e identifique como
o diretor trabalhou a questão da alienação.
TEMPOS MODERNOS
EUA, 1936.
Direção: Charles Chaplin.
Duração: 85 min.
Elenco: Charles Chaplin, Paulette Goddard,
32 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
Um trabalhador de uma fábrica (Chaplin) tem um colapso nervoso por
trabalhar de forma quase escrava. É levado para um hospital e, quando
retorna para a “vida normal”, para o barulho da cidade, encontra a fábrica já
fechada. Vai em busca de outro destino, mas acaba se envolvendo numa
confusão: ao ver uma jovem (Paulette) roubar um pão para comer, decide se
entregar em seu lugar. Não dá certo, pois uma grã-fina tinha visto o que houve
e entrega tudo. A prisão, então, parece ser o melhor local para se viver:
tranqüilo, seguro e entre amigos. Mesmo assim, os dois acabam escapando e
vão tentar a vida de outra maneira. A amizade que surge entre os dois é bela,
porém não os alimenta. Consegue um em outra fábrica, mas logo os operários
entram em greve e ele se mete novamente em perigo. No meio da confusão,
encontra uma bandeira vermelha, que julga ter caído de um caminhão e
chama pelo dono, enquanto acena com ela. Um grupo de militantes surge
atrás dele, e “junta-se” ao vagabundo. A polícia chega e o toma como líder.
Vai preso ao jogar, sem querer, uma pedra na cabeça de um policial. A moça
consegue trabalho como dançarina num Music Hall e emprega seu amigo
como garçom. Também não dá certo, e os dois seguem, numa estrada, rumo
a mais aventuras.
Capitalismo e Revolução
A história de toda sociedade humana é a história da luta de classes: entre
homem livre e o escravo, entre o patrício e plebeu, entre o barão e o servo.
Numa palavra, opressores e oprimidos se encontram sempre em conflito,
disfarçada ou abertamente, e que termina sempre por uma transformação
revolucionária de toda a sociedade, ou então pela ruína das classes em luta.
[...]
A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças
produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas
em conjunto. [...] Que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças
produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social? [...]
A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e,
com isso, todas as relações sociais.
A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía, pelo
contrário, a primeira condição de todas as classes dominantes do passado.
Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o
sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança
distinguem a época burguesa de todas as precedentes.
Devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção e ao
constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a
torrente de civilização mesmo as nações mais bárbaras.
Sinopse: Ambientado no período da Depressão americana da década de
1930, este filme aborda a relação da sociedade industrial com os deserdados.
Henry Bergman, Tiny Sandford e Chester Conklin, entre outros.
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 33
Ela obriga todas as nações do mundo a adotarem o modo burguês de
produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização, isto é, a
se tornarem burguesas. [...]
Mas o sistema burguês tornou-se demasiadamente estreito para conter as
riquezas criadas em seu seio. [...] As armas que a burguesia utilizou para abater
o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. A burguesia, porém,
não forjou somente as armas – os operários modernos, os proletários (MARX e
ENGELS, 1997, p. 9-15).
Depois de analisarmos as teorias de Durkheim, Weber e
Marx a respeito da sociedade, como elas podem nos
ajudar a entender a sociedade contemporânea?
No Brasil e no mundo, a pobreza pode ser pensada como
uma conseqüência do sistema capitalista? Por quê?
PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA BRASILEIRA
Já falamos das teorias clássicas, que estavam ocorrendo por toda a Europa, no
início do século XX. Mas e aqui no Brasil, será que havia algum interesse em
explicar e entender a nossa sociedade? É exatamente sobre isto que
conversaremos agora: como se deu a produção sociológica em nosso país.
No Brasil, o processo de formação, organização e sistematização do
pensamento sociológico obedeceu também às condições de
desenvolvimento do capitalismo e à dinâmica própria de inserção do país na
ordem capitalista mundial, refletindo, assim, a situação colonial, a herança da
cultura jesuítica e o lento processo de formação do Estado Nacional.
O capitalismo é a dinâmica própria de inserção do país na ordem capitalista .A
Sociologia brasileira nasce a partir da década de 1930, quando começam a
aparecer reflexões sobre a realidade social com um caráter mais investigativo e
explicativo, pois é a partir daí que as produções literárias começam a demonstrar
interesse na compreensão da sociedade brasileira, quanto à sua formação e
estrutura, o que não significa que, antes disso, ninguém tivesse pensado sobre a
sociedade brasileira, mas, até então, o que existia eram ensaios sociológicos sobre
o Brasil, elaborados por historiadores, políticos, economistas, etc.
A necessidade de explicar a sociedade brasileira foi impulsionada por diversos
movimentos que estimularam uma postura mais crítica sobre o que acontecia em
nosso país, provocando transformações de ordem social, econômica, política e
cultural no país e despertando o interesse de pensadores.
Dentre eles, podemos destacar o Modernismo, um movimento que lutava para
que as regras vigentes sobre a arte e a literatura não seguissem os moldes
34 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
internacionais, a fim de não sufocarem a criação nacional e culminou com a
Semana de Arte Moderna, em São Paulo (1922), um marco da independência da
arte brasileira. Dentre seus idealizadores, destacamos Mario de Andrade, Manuel
Bandeira, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, etc.
Outro movimento que influenciou o surgimento do pensamento sociológico no
Brasil foi a formação dos partidos que começou a ocorrer nesse período,
sobretudo do Partido Comunista, em 1922, que tinha o ideário de criar uma cultura
socialista no Brasil. Com base em teóricos como Karl Marx, inauguraram uma
maneira de fazer política voltada aos interesses da classe trabalhadora.
Relevante também, nesse contexto, foi o Movimento Armado de 1935, também
conhecido como o “Levante Comunista” e que, embora não tenha sido vitorioso,
teve como protagonistas o Partido Comunista e os Tenentes de esquerda do
Exército brasileiro, que lutavam pelo fim do imperialismo e pela existência de uma
ditadura democrática.
Otávio Ianni (1926- 2003), sociólogo brasileiro, divide os acontecimentos no Brasil e
organiza a implantação da Sociologia neste país em três fases ou gerações de
autores. São elas:
1ª Geração – É composta por autores que se preocupavam em fazer estudos
históricos sobre a nossa realidade, com um caráter mais voltado para a Literatura
do que para a Sociologia. Trazemos como referência desse período o autor
Euclides da Cunha. Na sua obra Os Sertões, faz relatos sobre como era a terra, a
paisagem, o sertanejo, além de descrever como ocorreu a guerra de Canudos. É
possível perceber seu enfoque sociológico quando faz, nesta obra, revelações
quanto à organização da República que estava sendo consolidada. Na verdade,
Canudos era um retrato da sociedade republicana que não conseguia suprir as
necessidades básicas de seu povo. Nesse aspecto, a observação de Euclides da
Cunha transforma sua obra em um dos referenciais de início do pensamento
sociológico no Brasil.
2ª Geração – Nesta fase, os autores possuem uma preocupação em fazer
pesquisas de campo, característica das pesquisas sociológicas, e que começa a
ser levada em conta. Como referência desta geração, podemos citar Gilberto
Freyre que, na obra Casa Grande & Senzala, demonstra as características da
colonização portuguesa, a formação da sociedade agrária, o uso do trabalho
escravo e, ainda, como a mistura das raças ajudou a compor a sociedade
brasileira. Inaugura uma teoria que combatia a visão elitista existente na época.
No entanto, Freyre tinha uma postura aristocrática e conservadora relacionada à
sociedade brasileira, pois suas descrições do tempo e da escravidão adquirem
uma conotação harmoniosa e sem conflitos nessa estrutura.
Outro autor de referência desta fase, mas com um caráter mais crítico sobre a
formação da nossa sociedade, é Caio Prado Júnior, que recorria à visão marxista,
partindo do ponto de vista material e econômico para o entendimento da
formação do Brasil. Em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, apresenta a
tese de que a origem do atraso da nação brasileira estaria vinculada ao tipo de
colonização a que o Brasil foi submetido por Portugal, isto é, uma colonização
periférica e exploratória.
3ª Geração – Neste período, foi fundada a Escola Livre de Sociologia e Política
SABER M
Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra 35
(1933) iniciando, assim, o estudo sistemático da Sociologia, opondo-se ao caráter
genérico de “humanidades” que adquirira na formação de engenheiros, médicos
e advogados. Esta terceira geração é formada por sociólogos que vieram de
diferentes instituições universitárias, inaugurando estilos um tanto quanto
independentes, pois trabalhavam com os autores clássicos da Sociologia e a
produção crítica destes. Vários autores fazem parte deste período. Podemos citar
como referência Florestan Fernandes, importante nome da Sociologia crítica no
Brasil. Em sua obra Fundamentos da Explicação Sociológica e em todas as outras,
tinha como metodologia “dialogar”, de maneira crítica, com a produção
sociológica clássica, fazendo um contínuo questionamento sobre a realidade
social e as teorias que tentavam explicá-la, sempre buscando ir além das reflexões
já existentes.
Durante o regime militar no Brasil, alguns dos intelectuais afastados de suas
cátedras be de suas pesquisas continuaram trabalhando no exterior; outros
formaram núcleos de pesquisa independentes.
Nos anos 80, com a abertura política, muitos cientistas sociais decidiram deixar a
cátedra para ingressar na política propriamente dita. O PT (Partido dos
Trabalhadores) foi o que mais se beneficiou com essa nova atuação. Florestan
Fernandes, Antonio Candido e Mello e Souza e Francisco Weffort foram alguns dos
nomes que entraram na luta política partidária. O PDT (Partido Democrático
Trabalhista) teve a filiação do antropólogo Darcy Ribeiro, e Fernando Henrique
Cardoso esteve presente na fundação do PSDB (Partido Social Democrata
Brasileiro).
Assistimos, assim,ao engajamento dos cientistas sociais na política formal e
institucional. Percebemos, também, uma progressiva diversificação das ciências
sociais, em especial da Sociologia. Multiplicaram-se os campos de estudo,
fazendo surgir análises sobre a condição feminina, o menor, as favelas, as artes, a
violência urbana e rural, entre outras.
A Sociologia se torna, cada vez mais, interdisciplinar e plural, com a multiplicação
infindável de seus objetos de estudo, no que é auxiliada pela própria realidade,
cada vez mais diversificada.
Sinopse: O filme conta a história de Olga Benário Prestes. Nascida em Munique,
na Alemanha, em 1908, filha de pais judeus, Olga tornou-se uma ativista do
comunismo. Após libertar seu namorado Otto Braun da cadeia, eles são
forçados a fugir para a União Soviética, onde recebem treinamento de
guerrilha. Olga logo se destaca no Partido Comunista, onde conhece Luís
Carlos Prestes, que viria a se tornar um dos principais líderes comunistas do
Brasil. Em 1934, quando Prestes volta ao Brasil, designado pela Internacional
Comunista para liderar uma revolução armada, Olga é designada para
OLGA
BRASIL, 2004.
Direção: Jaime Monjardim
Elenco: Camila Morgado, Renata Jesion, Caco Ciocler,
Osmar Prado, Floriano Peixoto e Fernanda Montenegro,
entre outros.
36 Sociologia - Maria Helena Viana Bezerra
escoltá-lo. Passam a viver na clandestinidade enquanto planejam a derrubada
do governo de Getúlio Vargas. Durante este período, a relação amorosa entre
Prestes e Olga amadurece e ela fica grávida em 1935.
Quando o movimento revolucionário é derrotado pelas forças de Vargas, Olga
e Prestes são presos pelo duro chefe de polícia Filinto Müller. Diante de rumores
de que seria deportada, Olga divulga sua gravidez e solicita asilo político, por
ser casada e estar grávida de Prestes. O governo Vargas, que neste momento
simpatizava com a ditadura de Adolf Hitler, deporta Olga, mesmo grávida de
sete meses. Na prisão alemã, dá à luz uma filha que batiza de Anita Leocádia,
em homenagem a D. Leocádia, mãe de Prestes. Após o período de
amamentação, a menina foi retirada de Olga e entregue à D. Leocádia. Após
anos de prisão em campos de concentração, durante os quais a opinião
pública internacional fez inúmeras tentativas de libertá-la, Olga é morta na
câmara de gás. Somente anos depois, Prestes e sua filha leriam a última carta
de Olga, onde faz uma comovente despedida.
Como você vê o engajamento dos cientistas sociais na
política partidária?
Você costuma participar da discussão sobre os problemas
sociais em seu cotidiano (família, escola, bairro, cidade)?
De que forma?
Na próxima unidade, você aprenderá a se perceber como um ser que vive em
sociedade, convivendo com outras pessoas diferentes de você e desenvolvendo
atividades em equipe. Perceberá também como se organiza o mundo do
trabalho e como se dão as injustiças sociais.